sexta-feira, 30 de abril de 2010

tango


um tango na vitrola um vermute

à meia-luz na sala
promessa de pecado e de desfrute
mas inda se cala

aberto até acima do joelho
revela-se o vestido
decote debruado de vermelho
como prometido

e a mão conduz a mão até a dança
desliza no cabelo
daí ao colo à boca ao corpo e avança
mais — sem atropelo

e agora o que era dança beijo seja
e o que se oferecia
tomado e repartido se anteveja
como apetecia

(...)

manhã terno e vestido em desalinho
a um canto do sofá
um corpo noutro corpo faz seu ninho
— o que mais falar?



Márcia Maia

quarta-feira, 28 de abril de 2010

21 gramas


pudesse talvez um legista
dissecar-me os 21 gramas
perdidos à hora da morte
e que se crê sejam a alma
encontraria 20 gramas de vazio
um de descrença e absolutamente
nenhuma calma     tampouco alma



Márcia Maia

segunda-feira, 26 de abril de 2010

La media vuelta


gian carlo amici©




















Sorriu. Deixou que ele abrisse o vinho. E quando pôs o velho disco na vitrola, sabia o que fazia. Voltara a caminhar beirando abismos. Cairia. Mas, dessa vez, conhecia os caminhos de voltar.



Márcia Maia


domingo, 25 de abril de 2010

poeminha cínico


mesmo o mais cinzento dos domingos
diz-se azul quando amanhece

ainda que em meio a terremotos
maremotos tempestades

mesmo o amor mais corrosivo sabe
a mel quando engatinha

ainda que respingue sangue e fel
a cada passo

mais importa o prometido que o
que encerra

à luz dos dias a crua e cínica
e vã realidade

sendo assim seguem sempre azuis
e doces os amores e os domingos

a propaganda é a alma do negócio
bem se sabe



Márcia Maia

sexta-feira, 23 de abril de 2010

desconstrução


digo não  desisto e sigo
adiante sem olhar
para trás  em vão prossigo
nessa ânsia de buscar
a saída que não há
não me contenho  maldigo
o caminho onde mitigo
a angústia de cegar-
me  esse vão cruel castigo
de em mim desacreditar

calo-me  quebro o antigo
espelho  o que sobrar
é sangue e cacos  desdigo
a dor rubra a alucinar-
me o riso a me avermelhar
a noite onde não consigo
adormecer  desobrigo-
me de auroras  sou mar
chumbo e bravio  sou figo
apodrecido ao luar



Márcia Maia

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Bucólica



Da cor de caramelo eram os seus sapatos. E em nada combinavam com a calça jeans escura e a camisa leve de algodão clarinho que usava. Você sorria como se nada importasse além do centro antigo da cidade, dos casarões pintados de cor-de-rosa, azul ou amarelo-claro, das escadas de madeira escura que se bifurcavam, dos lustres de cristal, da tarde. E me contava, olhos brilhando, histórias dessa terra que é a sua.
Pouco adiante, onde o jasmineiro floria em grená, a Poesia nos aguardava em sua praça, sob o olhar complacente do piano carcomido que a escada sustentava, e a benção do herói cujo sangue, há tanto derramado, tinge ainda o chão dessa cidade, não de rubro, mas de cobre, que em tudo se assemelha à cor de caramelo que colore seus sapatos.



Márcia Maia

segunda-feira, 19 de abril de 2010

like a rider in the sky


cavaleiro das nuvens me apresento
dia e noite ao sabor
do vento norte
dentre as cores do ocaso
ou ao nascente
inocente do que sei
não do que posso

varo os dias no sentido das estrelas
e as noites a buscar vãos
passarinhos
sou irmão das corujas
dos morcegos
dos dementes e mendigos
sou abrigo

se no céu quando o sol brilha
inscrevo a vida
em meu peito minhas mãos
de amor vazias
quase sempre inscrevem
noite inscrevem
morte

cavaleiro das nuvens
me apresento
dia e noite
ao sabor
do
vento
norte



Márcia Maia

sexta-feira, 16 de abril de 2010

desobrigação


wang xiao song©





















abro mão da obrigação
de ser feliz na sexta
à noite

de sair copo a copo

corpo a corpo
bar em bar

basta-me um pouco

de quietude de
silêncio

o balanço da cadeira

na penumbra da
varanda

(copo de vinho solo

de jazz quinteto de
mozart)

a noite azul qualquer

estrela alguma
lua

e a lembrança da tua

boca das tuas mãos
como arrepio

em minha pele




Márcia Maia

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Traição



Enquanto ela, malas feitas, pensava se deixava as unhas clarinhas ou se as pintava de vermelho, o telefone tocou. Numa voz quase inaudível, ele lhe diz que está de cama, com febre, gripado, talvez com uma pneumonia, que o médico sugeriu até internamento e que talvez fosse melhor ela não ir.
Que faria? Tinham planejado aquele encontro há meses. Não conseguiria trocar a passagem assim, na véspera. Muito menos teria novas férias, quando, e se, ele ficasse curado. Merda!
Alô? ele repetiu. Diga alguma coisa, meu amor. Mais tarde, a custo ela disse, mais tarde. Ligo mais tarde, prometeu. Está bem, ele respondeu, termômetro numa mão, telefone na outra, lágrimas prestes a cair.
Ela não chorou. Jogou o telefone que, coitado, nem culpa tinha, no chão. Pegou o Santo Antônio, em cima da cômoda e, com o auxílio de um estilete, arrancou o Menino. Guardou-o na segunda gaveta da escrivaninha, a única que tinha chave. E, meio tonta de tristeza e frustração, Santo Antônio na mão, dirigiu-se à cozinha. O problema era gripe, talvez pneumonia, não era? Pois o santo ia ver o que era bom pra tosse. Abriu a geladeira e pôs o santo no meio dos iogurtes, na prateleira mais fria.
É o seguinte, meu caro, disse, se Miguel não ficar bom ainda hoje, daí você não sai. Vai ficar gelado até pegar uma pneumonia ou virar picolé. E fechou a porta. Não queria que o santo a visse chorar.
Depois, teve uma idéia melhor. Tirou o santo da geladeira e o colocou no congelador. Precisou remover as bandejas de carne e as caçambas de gelo. O diabo do santo era grande. Por fim, acomodou-o entre o pacote de salsichas e o tupperware com o resto de bobó de camarão do almoço da véspera.
Veja bem, falou séria, a custo contendo as lágrimas, sempre acreditei em você. Não queria fazer isso, mas é um caso extremo. Uma traição. Portanto, trate de curar Miguel rapidinho, porque se demorar, trago o Menino e o ponho aqui com você. E você sabe como é grave pneumonia em criança. Já imaginou o que lhe acontece se Ele adoece e morre?



Márcia Maia

segunda-feira, 12 de abril de 2010

quase um poema de abril


o cheiro de terra molhada

desata as trancas da memória

a noite entorna-se



Márcia Maia

sábado, 10 de abril de 2010

mutação


envelheci num átimo

no preciso instante
entre o fim do filme
e o acender
das luzes do cinema

atônitos
entreolharam-se os espelhos
ante a dubiedade
da imagem
refletida

e eu?
parti
deixei sobre a cadeira
ao lado
a face antiga



Márcia Maia

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Sem remédio



ASL-90.004/305.B12 acreditou quando lhe contaram que, na face oculta da Lua, havia uma caverna aonde, durante a lua nova, os andróides se transformavam em humanos assim que nela penetravam. Buscou-a com afinco. Nada encontrou além de areia, pedras e uma bandeira antiga, listrada e rota. Desolada, lançou-se no espaço na esperança de que algum raio a atingisse e destruísse. O que não tardou a acontecer.



Márcia Maia

quarta-feira, 7 de abril de 2010

persuasão


as palavras me amanhecem

estrangeiras

sobre a cama escondidas
nos lençóis

e me amarram e me vendam
e me amordaçam

traiçoeiras

para que eu nunca mais ouse
escrever versos a ti




Márcia Maia

segunda-feira, 5 de abril de 2010

trama

clarence john laughlin©
















invento a dor que pressinto
e nada sinto — acrescento
noutro momento desminto
minto ser dor meu tormento
dor que consinto é-me alento
falso alento não consinto
mais dói se em tormento minto
desminto após um momento
dor acrescento à que sinto
e à que pressinto se invento



Márcia Maia

sábado, 3 de abril de 2010

de vendaval e calmaria


a memória dos olhares se adelgaça e a imagem dos que foram tremeluzem quase como holografias. não há velas que de novo as alumiem. a saudade entretanto mantém viva a sua essência. a madrugada faz-se ponte de silêncios e sentires. as imagens escondidas nos espelhos se entreolham e entrehabitam. os pássaros de pedra ousam vôos lá na sala. enquanto o vento se alterna em vendaval e calmaria.



Márcia Maia

sexta-feira, 2 de abril de 2010























a chuva enxágua as calçadas
da sexta-feira
deserta

encharcada a miséria se abriga
sob os pórticos das igrejas
antigas
pintadas de novo

— preciosamente preservadas —

sombria imagem de esquecidos

não há páscoa nesta cidade
de vivos-mortos

sem ressurreição e sem saída
aqui é sempre
— e todo dia —
sexta-feira da paixão



Márcia Maia